Eve, Marie e Irène
Fonte: Musée Curie.
A Primeira Guerra Mundial iniciou-se em 18 de julho de 1914. França, Rússia e Grã-Bretanha uniram-se na Tríplice Entente, e ao longo do conflito, outros países aliaram-se a eles. Em 3 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à França. Durante esse período inicial da guerra, a cientista polonesa, naturalizada francesa, Marie Skłodowska-Curie enviou as suas filhas, Irène e Ève, para L'Arcouest, acompanhadas pela empregada polonesa Josephine (Jozia) e pela governanta Valentine (Walcia). (Quinn, 1997)
Marie expressou as suas opiniões sobre a iminente guerra em uma carta para sua amiga Hertha Ayrton, dizendo: “É duro pensar que, depois de tantos séculos de desenvolvimento, a raça humana ainda não saiba resolver dificuldades de outra maneira que não pela violência" (Quinn, 1997, p.386). Ela também escreveu para sua filha Irène durante a primeira semana da guerra, mencionando que "todos os franceses têm grandes esperanças e pensam que a luta, embora dura, terminará bem. Mas que massacre vamos presenciar, e que loucura ter deixado que se desencadeasse!" (Quinn, 1997, p.386)
Desde o início, Marie comprometeu-se a ajudar de alguma forma durante a guerra, como afirmou em outra carta para Irène: "Você e eu, Irène, tentaremos nos tornar úteis" (Quinn, 1997, p.386).
Irène, por sua vez, enviava cartas diárias para sua mãe, implorando para voltar a Paris e ajudar de alguma forma na guerra, expressando seu descontentamento por estar longe da cidade durante esse momento.
Durante a guerra, o governo francês censurou os meios de comunicação para evitar a divulgação de más notícias sobre o conflito à população francesa. Apesar da saudade de suas filhas e da população mais abastada se mudando para o interior, Marie decidiu permanecer em Paris. A amostra do elemento rádio que ela possuía foi considerado um bem de grande valor, “em setembro de 1914, Marie recebeu a missão de transportar a amostra de rádio de Paris para Bordeaux” (Santos, 2018, p.50). O rádio era considerado um tesouro nacional e deveria ser transportado pela pessoa que mais conhecia a amostra. Foi, então, conduzido até Bordeaux, acondicionado em uma caixa de chumbo, para ser resguardado com segurança durante o período da guerra.
A batalha do Marne começou em 4 de setembro de 1914, e a França saiu vitoriosa. Essa vitória trouxe esperanças à população de que a guerra pudesse chegar ao fim, mas, infelizmente, estavam errados, e o conflito se estendeu por um longo período. Durante esse tempo, vários grupos, como padres, anticlericais e feministas, uniram-se para ajudar na guerra, enquanto poucos se levantaram contra, o que pode ter sido devido à censura da imprensa ou ao sentimento anti-alemão.
A jornalista Susan Quinn, autora da biografia de Marie Curie, destaca que a guerra abriu novas possibilidades para muitas mulheres. Com os homens no front de batalha, elas foram convocadas para substituí-los nas fábricas de munição, produzindo bombas e armas, e assumiram uma ampla gama de cargos para manter o país e a economia em movimento. As mulheres dirigiam bondes, carregavam carvão, tornavam-se garçonetes e marceneiras, além de assumirem o trabalho rural que antes era realizado pelos homens (Quinn, 1997).
Para Marie, a guerra também trouxe novas oportunidades e desafios. Ela estava determinada a contribuir de alguma forma, aplicando seus conhecimentos científicos e habilidades para ajudar no esforço de guerra. Além disso, Marie também via a guerra como uma oportunidade para unificação polonesa e a reconciliação com a Rússia.
Durante todo o período da guerra, Marie Curie manteve-se atenta e fez várias doações para caridade, tanto para a França quanto para a Polônia, seu país de origem. Ela também investiu o dinheiro proveniente de seu segundo Prêmio Nobel em bônus de guerra franceses, retirando-o de um banco na Suécia. Infelizmente, essa escolha resultou na desvalorização quase total dos seus fundos. Marie estava disposta a contribuir ainda mais, oferecendo suas medalhas como doação, mas as autoridades do Banco da França recusaram-se a aceitá-las (Quinn, 1997).
Marie encontrou sua missão na guerra após perceber as deficiências e a falta de organização no serviço de saúde francês, principalmente quando conversou com o radiologista Dr. Henri Becquerel. Ela descobriu que os equipamentos de raios-x eram escassos e, quando disponíveis, frequentemente estavam em más condições ou não havia pessoas qualificadas para operá-los (Quinn, 1997).
De acordo com Quinn (1997) Marie tinha familiaridade com a medicina, pois tinha dois parentes médicos e cresceu cercada pela doença de sua mãe. Ela também possuía conhecimentos sobre a produção de raios-x, assim como muitos cientistas da época. Com base nessa experiência, ela estabeleceu unidades de radiologia em hospitais, utilizando equipamentos obsoletos provenientes de laboratórios ou consultórios de médicos mobilizados.
A necessidade de um equipamento móvel de raio-x tornou-se evidente durante as visitas de Curie aos hospitais da Cruz Vermelha. Ela iniciou sua busca por um automóvel pequeno e recebeu uma doação da Union des Femmes de France (União de Mulheres Francesas), uma organização feminista e de defesa dos direitos das mulheres. Com o carro em mãos, ela teve que adquirir os equipamentos necessários, que pesavam cerca de 250 kg. O veículo estava equipado com um gerador de eletricidade, pois faltava energia nos postos de emergência.
De acordo com Santos (2018), Marie, ao perceber a escassez de recursos em hospitais, desenvolveu unidades móveis para levar eletricidade e raios-x a regiões periféricas de Paris. Cada unidade incluía um gerador conectado ao carro, tubo de raios-x, mesa dobrável e equipamentos de proteção, como luvas e jalecos de chumbo.
O primeiro carro de radiologia, chamado Voiture Radiologique, e mais tarde conhecido como Petite Curie, foi um marco na região de Paris. Ele prestou serviços aos soldados que se retiravam para Paris durante a maioria da guerra. Em setembro de 1914, após a batalha do Marne, o carro desempenhou um papel crucial no atendimento a uma grande quantidade de feridos.
Aquele carrinho... levando apenas o equipamento estritamente necessário, sem dúvida deixou muitas lembranças na região de Paris. Operador, de início, por pessoal voluntário, ex-estudantes da École Normale ou professores... prestou serviços, sozinho, aos soldados que se retiravam para Paris, durante a maior parte da guerra, em particular na ocasião da grande leva de feridos que chegou em setembro de 1914, após a batalha do Marne. (Quinn, 1997, p.393).
O pessoal do carro consistia em um médico, um técnico e um motorista, e a instalação do equipamento demorava cerca de meia hora, ou até uma hora em casos mais difíceis. Marie também contou com o apoio da Patronage des Blessés e de um benfeitor particular chamado Ewald, que doou o segundo carro para ser convertido em um veículo de raios-x.
Marie em um carro de raio-x movel.
Fonte: Musée Curie.
Marie Curie enfrentou muitas dificuldades para levar os carros para a linha de frente, devido à burocracia e ao fato de ser mulher. No entanto, ela perseverou e foi acompanhada por sua filha, Irène Curie, que havia se formado em um curso de enfermagem aos 16 anos, após voltar para Paris em outubro de 1914, e já estava ajudando com os carros de raios-x. Irène também se tornou professora do curso de Manipulatrices do Hospital Edith Cavell, com apenas 18 anos.
Além de ministrar aulas no Hospital Edith Cavell, Irène conseguiu uma conquista incrível durante os anos da guerra: obteve seus certificados na Universidade de Sorbonne com distinção. Em 1915, recebeu o certificado em matemática; em 1916, em física; e em 1917, em química (Quinn, 1997).
Além de fornecer os equipamentos de raios-x, Marie percebeu a importância de capacitar profissionais para interpretar os exames de forma precisa e, assim, estabeleceu um programa de treinamento, em que formou mulheres em técnicas de raios-x, chamadas Manipulatrices.
O Dr. Becquerel treinou cerca de 300 médicos no Hospital de Val de Grace, e o exército abriu uma escola de raio-x, mas Marie percebeu que muitos desses profissionais não queriam este tipo de treinamento e desempenhavam um trabalho medíocre. Então ela estabeleceu uma escola de Manipulatrices, visando formar enfermeiras em técnicas de radiologia. Quinn (1997) relata que cerca de 150 mulheres foram treinadas em um curso intensivo de seis semanas. Essas mulheres foram designadas para postos de radiologia em todo o país, incluindo o exército, a Cruz Vermelha e outros hospitais.
Essas mulheres eram enfermeiras do exército, da Cruz Vermelha e de outros hospitais, e também empregadas domésticas, socialites e mulheres que possuíam outras formações. No entanto, nenhuma possuía formação científica.
De acordo com Santos (2018), Marie contou com a colaboração valiosa da cientista Marthe Klein para o treinamento. Ela obteve e equipou dezoito carros de radiologia, os quais realizaram exames em até dez mil feridos cada. Além disso, estabeleceu cerca de duzentos postos de radiologia em toda a França. Vestida com suas roupas civis e utilizando uma braçadeira da Cruz Vermelha, Marie percorreu a linha de frente em aproximadamente trinta viagens separadas, demonstrando assim seu comprometimento inabalável com o atendimento médico durante o período de guerra. (Quinn, 1997)
A Primeira Guerra Mundial chegou ao fim em 11 de novembro de 1918, com a assinatura do armistício. Marie recebeu a notícia enquanto estava em seu laboratório no Instituto do Rádio e, juntamente com Marthe Klein e uma faxineira, costuraram bandeiras que foram penduradas nas janelas do instituto em comemoração. Elas participaram das festividades, percorrendo a cidade em um antigo Renault, usado como carro de radiologia, que levou várias pessoas em sua capota e pára-lamas que estavam nas ruas de Paris participando das comemorações.
A Primeira Guerra Mundial, marcou uma época de desafios e transformações. Marie Curie, destacou-se por sua dedicação ao esforço de guerra, inovando na radiologia e treinando profissionais de saúde. Suas contribuições foram fundamentais, destacando a construção dos “Pequenos Curies” e a formação de técnicas em raio-x. O término do conflito em 11 de novembro de 1918 marcou o triunfo da determinação de Marie Curie e outras mulheres em meio ao conflito histórico.
Alunas do curso de radiologia (1917). Na primeira fila as professoras, no meio Irène Curie com Marthe klein e Suzanne Veil.
Fonte: Musée Curie.
Laboratório Curie, Instituto de Rádio, anos 1920.
Fonte: Musée Curie.
Saiba Mais:
Museu Curie: https://musee.curie.fr/
Marie Curie e a Primeira Guerra Mundial: http://dx.doi.org/10.23925/2178-2911.2018v18i1p47-59
Quinn, Susan. Marie Curie Uma Vida. São Paulo: Scipione Cultural, 1997. 526 p.
Autor: Ingryd Soares C. Pereira
Última Atualização: 02/03/2024
Referências:
Curie, Ève. Madame Curie. 10ª ed. São Paulo: Companhia editora nacional, 1957, 337 p.
Google arts and culture. Disponível em: <https://artsandculture.google.com/entity/m053_d?hl=pt>. Acesso em: 03 mar 2024.
Musée Curie. [s.d.]. Disponível em: <https://musee.curie.fr/>. Acesso em: 20 abr 2023.
Quinn, Susan. Marie Curie Uma Vida. São Paulo: Scipione Cultural, 1997. 526 p.
Santos, Paloma Nascimento dos. Marie Curie e a Primeira Guerra Mundial. História da Ciência e Ensino: Construindo Interfaces, São Paulo, v. 18, n. 18, p. 47-59, 5 out. 2018. Pontifical Catholic University of São Paulo (PUC-SP). Disponível em: http://dx.doi.org/10.23925/2178-2911.2018v18i1p47-59. Acesso em: 18 maio 2022.